A travessia das pedras e as perdas humanas no conto “A doida” de Carlos Drummond de Andrade

Cristina Maria Ribeiro de Oliveira

Neste texto será analisado o conto “A Doida”,  de Carlos Drummond de Andrade, à luz da teoria da enunciação, enfatizando a linguagem e sua relação com a subjetividade. Para tanto, é importante compreender a constituição do sujeito na e pela linguagem, em uma relação dialética entre o EU e o TU, que são complementares, reversíveis e se alternam como protagonistas da cena enunciativa, sendo um o locutor e o outro alocutário, que se constroem contrastivamente como enunciador e enunciatário. Nesse sentido, a leitura de um texto deve considerar sempre as configurações dos sujeitos que falam e para quem falam. No ato de se dizer eu, instauram-se também os tempos e espaços da cena, processo a partir do qual se constroem os sentidos nos atos enunciativos.

O conto “A Doida”, publicado no livro Contos de Aprendiz, de 1951, que, narrado em terceira pessoa, encena a relação humana de uma doida com as crianças da cidade. Em um ato repetido durante distintas gerações, as crianças tentam agredi-la jogando pedra em sua casa e a mesma devolve a pedra, xingando, em um movimento de agressão e de resistência.

No desenvolvimento do conto, a construção da narrativa encena a constituição das subjetividades por meio de um jogo de olhares sobre a velha, que vai do julgamento preconceituoso presente nas histórias que circulam na sociedade à visão compassiva do menino quando adentra o chalé: “Ele encarava-a, com interesse. Era simplesmente uma velha, jogada num catre preto de solteiro, atrás de uma barricada de móveis. E que pequenininha! O corpo sob a coberta formava uma elevação minúscula. Miúda, escura, desse sujo que o tempo deposita na pele, manchando-a. E parecia ter medo.”

Esse jogo de olhares é, na verdade, percebido pelo leitor quando este acompanha as estratégias de construção usadas pelo autor. Ao descrever, por exemplo, o contexto do chalé da doida, no texto, o narrador evidencia palavras como maltratado, abandonado, silêncio, muro, que indiciam o isolamento e o sofrimento da mulher excluída pela cidade.

Na história das relações familiares, dois eventos acontecem e se referem à situação de abandono entre a doida e o marido, que a repudiara, e entre ela e o pai que a expulsara, fazendo com que ela perdesse “todas as relações”. Ao se transformar de uma “moça igual às outras” em uma doida, que sai de um estado de razão para a loucura, observa-se um esvaziamento da subjetividade. O eu vai se constituindo pouco a pouco em um ele.

Na realidade, não há uma simples dicotomia entre a cidade e a mulher, uma vez que esse processo de assujeitamento se constrói dialeticamente, uma vez que ela faz um movimento semelhante ao marido e ao pai, ao enxotar uma preta velha, que esteve no cativeiro e que vinha, eventualmente, cozinhar para ela.

Mas é no espaço da rua que a doida protagoniza cenas de violência entre ela e as crianças ao realizarem um jogo agressivo de jogar pedras.  As perdas e as pedras são palavras que se sobressaem textualmente, na medida em que são intercambiantes. Enquanto as crianças jogam pedras no chalé, em um processo para destruir a casa da louca, o narrador dá conta das inúmeras perdas sofridas por ela. Mas a doida resiste, jogando as pedras de volta, xingando as crianças, em um diálogo, em que os papeis se inverteram, no que se refere ao protagonismo do sujeito. Há um duplo movimento de agredir e de resistir. O jogo com pedras, entre as crianças e a doida é uma metáfora do significado de excluir, expulsar a doida que perde suas relações e  faz um movimento de resistência.

A relação pedra perda se intensifica quando a criança que adentra o chalé joga a pedra fora, ao contemplar o interior  da casa esburacada e vazia. Ao ver a doida como uma velha, pequenininha, miúda, escura, com medo, percebe-a como um ser humano. Desaparecendo o desejo de maltratá-la, sente um chamado, uma necessidade de ajudá-la, com sentimento de responsabilidade por ela. Há um acolhimento da velha que a criança imagina estar morrendo. Mas a velha, ao ver que a criança não tinha pedra na mão e que sorriu, emite um som e permite que a criança a ajude a beber água. Nesta relação humana, entre o EU-TU, se estabelece a responsabilidade do sentimento, com cada sujeito se alternando no papel do protagonista e expressando seus desejos, enfim, estabelecendo um vínculo afetivo entre a velha e a criança. Há uma transformação do sujeito agressivo, que joga pedra na doida, doída, em um sujeito responsável pelo sofrimento do outro e também da doida que se permite ser uma velha ao lado de uma criança, ao interagir com o outro por meio da linguagem e ter consciência e uma intenção na ação. Há uma mudança na subjetividade, tanto da criança, que se responsabiliza pela velha, quanto da doida que a acolhe.

Importante acentuar a força da presença da morte como uma perda que supera a cena específica narrada no conto para atingir seu sentido na existência humana. Não sem razão, o poeta mineiro, nascido em Itabira, cidade que tem pedra no seu nome (Ita), vale-se da imagem da pedra em um de seus poemas mais conhecidos, “No meio do Caminho”, em que esse significante se repete com a ideia de obstáculo maior.

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