Por que ler literatura hoje?

Maria José Araújo Guerra

Não é novidade que problemas rondam a relação entre leitura, literatura e ensino. Relativamente à leitura de textos literários, a questão parece ter se complexificado nos últimos anos. Isso talvez possa ser explicado em virtude de uma espécie de aceleração do mundo que, entre tantos aspectos, influenciou o significado do termo “ficção”. O vocábulo tem sido progressivamente visto por muitos como tudo o que se opõe à realidade, entendida como objetiva, pronta, dada e acabada. O que foge a essa concretude percebida como verdade é considerado fantasia, em sua acepção mais negativa. O campo minado entre o que é fato e o que é invenção gera o que é conhecido como uma guerra de narrativas. A própria palavra narrativa, atendendo a interesses de ordem política, econômica e religiosa, generaliza-se como algo que fugiria à realidade. Uma seara de choques cujas consequências mais imediatas são as chamadas fake news e as desinformações. Em um mundo em que tudo parece ser muito urgente, em que as informações (incluindo as mais alucinantes) são consumidas de forma rápida e fragmentada, em que as mídias digitais exigem engajamento e discussão, quase sempre muito superficiais, a leitura literária, campo aberto à imaginação e à construção de mundos possíveis, fica em segundo plano. Existe, contudo, um paradoxo. Embora a literatura pareça ocupar um espaço de menor importância na sociedade contemporânea, frequentemente temos visto autores sendo cancelados e livros sendo proibidos. Isso revela que, embora pareça secundária frente a urgências, a leitura de textos literários é percebida como potencialmente perigosa, o que justificaria as tentativas de censurá-la. O que, aliás, não é tão novo assim, visto que Platão já recomendava a expulsão do poeta da República.

É preciso evitar um possível imbricamento entre essa ficção com carga semântica de mentira e a artística ou, mais detidamente, a ficção literária. Isso pode ser feito, de imediato, ratificando a natureza do texto literário: ele é, antes de tudo, mediação — uma entre as formas simbólicas a partir da qual se constroem os sentidos das coisas e do mundo. A literatura, com suas narrativas e personagens, não é reflexo direto e certo da realidade vivencial. Ela é sempre mediadora e mediada. Quando essa função é deixada de lado, corre-se o risco de imputar à obra uma certa carga de moralidade e de julgar suas personagens segundo padrões de comportamento. O texto literário é, antes de mais nada, uma obra artística. Uma obra de construção e jogo.

Se se atenta para essa característica, a leitura literária é sempre um convite. Mas o mergulho nesse espaço não é ameno: haverá muitas vozes para serem ouvidas, comparadas, confrontadas; personagens com delineamentos diversos que espelham ou refratam identidades; encenações em tempos e espaços diversos, muitas vezes desconhecidos. As estratégias elaboradas nesse processo estético, naturalizando paradoxos e nos fazendo experimentar incertezas, tão típicas da natureza humana, podem sim suscitar questionamentos a respeito do ser e estar no mundo vivencial. Mas, ao modo das investidas de Perseu contra Medusa, o olhar oferecido pelo texto literário, vale ratificar, é enviesado, oblíquo, mediado, e nos oferece a possibilidade de vislumbrar novas formas de existência, de lidar com ambiguidades da vida.

Essas reflexões nos conduzem a um outro traço importante em defesa da literatura: o texto literário convida o leitor a sair de sua perspectiva e ir ao encontro do outro, para ver de onde esse outro está enxergando. Em outras palavras: a obra literária encena um universo que o leitor pode desconhecer e ao qual pode ser confrontado, ampliando a visão da sociedade, dos afetos, das emoções e de outros seus iguais e, ao mesmo tempo, tão diferentes. Em tempos de inúmeras práticas e discursos de ódio, essa característica antropológica merece atenção. Sendo uma manifestação universal, a literatura confirma o homem em sua humanidade.

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